A ideia não é nova e pelo menos Homero já a utilizava. Logo a abrir a Ilíada, o sacerdote de Apolo, Crises, queixa-se por lhe terem raptado a filha. Então
… Enfureceu-se o deus contra o rei e por isso espalhara entre o exército
uma doença terrível de que morriam as hostes.
…
Assim (o sacerdote) disse, orando; e ouviu-o Febo Apolo.
Desceu do Olimpo, com o coração agitado de ira.
Nos ombros trazia o arco e a aljava duplamente coberta;
aos ombros do deus irado as setas chocalhavam
à medida que avançava. E chegou como chega a noite.
Depois sentou-se à distância das naus e disparou uma seta:
terrível foi o som produzido pelo arco de prata.
Primeiro atingiu as mulas e os rápidos cães;
mas depois disparou as setas contra os homens.
As piras dos mortos ardiam continuamente. (I, 9-11; 43-52).
Mais tarde, foram os discípulos de Jesus que perante a cura do cego de nascença perguntavam: “Mestre, quem teve a culpa de ter nascido cego: ele ou os pais?”. De pouco adiantou a recusa de Jesus em aceitar tal explicação: “Nem ele nem os seus pais” (Jo 9,2.3).
Mais recentemente, o cardeal Siri veio também dizer que a sida era um castigo de Deus.
É já altura de deixarmos de maltratar Deus e culpá-lo das nossas burrices. Muito do nosso sofrimento é causado pelos nossos erros, pelos erros dos outros ou pela dinâmica de uma natureza que é tão imperfeita como nós. Mas é tão cómodo culparmos Deus.
Coitado de Deus! Deus que é Amor puro, oblativo, comunicativo.
Mas até aqueles que acreditam que Deus é Amor, arranjam maneiras para distorcer esse Amor. Deus castiga porque ama; e quanto mais sofrimento mandar, maior é o seu amor. Tenho ouvido tantas vezes isto, especialmente agora que estou doente!
E, no entanto, Jesus para nos mostrar o Amor de Deus contou aquela parábola lindíssima do filho pródigo. Deus é o Pai que espera todos os dias o regresso do filho pecador. E quando ele regressa e nem sequer se acha digno de ser escravo na casa paterna, o Pai manda aos seus servos: “Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha; ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado” (Lc 15, 22-24).
Como é bom acreditar num Deus assim que está sempre disposto a amar-nos e parece que nem sequer chega a tomar consciência dos nossos pecados!