Jo e Otra Vez Menuda Mierda o Alegria: Timket

Jhosua Benavides




Timket: a riqueza da tradição etíope
Por: JOSÉ VIEIRA




No século XVI, um cronista português foi o primeiro europeu a descrever oTimket, a festa etíope que celebra o baptismo do Senhor. Quase 500 anos depois, a tradição mantém-se intacta.



Timket celebra-se a 19 de Janeiro, ou, segundo o calendário local, no dia 11 do mês de Terr. Os preparativos para a festa começam com a montagem de algumas tendas junto a um curso de água, lago ou piscina baptismal, local onde irá decorrer a celebração.

Na tarde do dia 18, chamado ketera, os fiéis vão-se reunindo junto às igrejas ortodoxas, normalmente edificadas em pontos altos das povoações ou perto delas. As mulheres cobrem as cabeças e o corpo com natalás, mantos brancos feitos de algodão. Muitos homens vêm embrulhados no gabbi, o equivalente na indumentária masculina. As jovens vestem roupas novas tradicionais, feitas de algodão branco e adornadas com faixas coloridas, porque há um ditado popular que diz que se o vestido não for estreado no Timket, depressa se romperá. Alguns rapazes trazem consigo varas finas, pintadas de vermelhão, com a casca cortada em padrões decorativos complicados.
Dentro dos templos já há muito que se respira o ar da festa. Os padres terminaram de envolver os tabotes da igreja em vistosos panos de seda colorida e debruada a ouro e prata. Trata-se das placas de consagração da igreja. Recordam as Tábuas da Lei e são feitas de madeira ou de barro, contendo o nome do santo a quem o altar é dedicado. De facto, são os tabotes que fazem das igrejas lugares sagrados. Normalmente estão vedados por grossas cortinas e paredes e equivalem ao Santo dos Santos do Templo de Jerusalém, lugar onde era guardada a Arca da Aliança, que o tabot representa e evoca. É sobre essas placas sagradas que os padres ortodoxos celebram a Eucaristia e só eles podem entrar descalços nesse espaço sagrado. O altar é coberto por um baldaquino e tem ainda um ícone do santo patrono, pinta do ou num baixo-relevo de prata.
Entretanto, padres, diáconos e debteras (leigos teólogos especialistas em canto litúrgico) vão-se vestindo com ricos paramentos, coloridos e cheios de bordados, cobrindo as cabeças com turbantes brancos.




No recinto da igreja, os elementos do coro, vestidos a preceito, cantam, saltam e dançam, ao ritmo de grandes tambores litúrgicos, palmas e ululares estridentes, os louvores de Deus, da Virgem Maria e dos santos a quem a igreja é dedicada.
Forma-se, então, a procissão para sair rumo ao lugar onde se vai celebrar o Timket. Os padres colocam os tabotes à cabeça, ficando com os rostos emoldurados pelos panos garridos que lhes caem dos lados. Os diáconos levam cruzes feitas de prata, latão e madeira, e alguns ícones de santos. Padres e diáconos são abrigados por umbelas, também elas ricamente bordadas e vistosas. A multidão envolve o clero que transporta os objectos sagrados e o cortejo dirige-se lentamente para o local onde foram montadas as tendas, cantando e dançando com entusiasmo e exuberância.
Chegados ao lugar da celebração, os tabotes são colocados nas tendas montadas e adornadas para o evento. Clero e monges formam duas filas, frente a frente, e, apoiados nos cajados litúrgicos, vão balanceando os corpos e as vozes ao ritmo de um tambor, enquanto cantam pela noite dentro salmos e hinos da liturgia das horas em guez, a língua mais antiga da Etiópia. Os leigos passam a noite ao relento a cantar e a dançar para vencer o sono e enxotar o frio.




Ao nascer do Sol, começa a catequese sobre o baptismo de Jesus através de uma série de sermões sobre o significado da festa. Depois um bispo ou padre benze a água e com ela asperge a multidão, que se atropela e acotovela para receber com devoção uns salpicos de água benta, o ponto alto da celebração do Timket.
Em Adis Abeba, a capital do país, as cerimónias decorrem invariavelmente no vasto parque de Jan Meda, onde se encontra o tanque baptismal. Trata-se de uma pequena taça de pedra com um alto-relevo representando o baptismo de Jesus do cimo do qual quatro tubos lançam esguichos de água em redor. A celebração atrai uma multidão enorme de ricos e pobres e congrega os tabotes de muitas das igrejas da cidade. É presidida por Abun Paulós, o patriarca ortodoxo, coadjuvado por inúmeros bispos e clero, a que também assistem muitos convidados, membros do Governo e de outras igrejas. O ajuntamento de fiéis é tão vasto que o patriarca tem de recorrer a uma mangueira para borrifar o povo com água benta.
Terminados os ritos, a celebração litúrgica dá lugar à festa do povo, que, em pequenos grupos, canta e dança sem descanso pelo dia fora numa explosão de alegria até ao fim da tarde, quando o clero levar os tabotes à cabeça de volta às igrejas.

A primeira descrição

Timket é celebrado por toda a Etiópia com pompa, circunstância e muita fé, desde os grandes centros urbanos até às aldeias mais remotas, sendo dia feriado nacional. A Igreja católica também celebra o baptismo do Senhor no mesmo dia, mas a liturgia é bem mais modesta.
Nalgumas regiões do país, como em Lalibela e Gondar, as celebrações são muito características e há fiéis que chegam a passar através de um tanque ou piscina cheia de água benta preparada para o efeito.
Esta é uma prática muito antiga que foi, aliás, testemunhada e descrita em grande detalhe no século XVI pelo padre Francisco Álvares. Capelão de uma embaixada enviada em 1520 à Etiópia pelo rei de Portugal, o padre Álvares publicou as observações e memórias dessa viagem de seis anos no livro Verdadeira Informaçam das Terras do Preste Joam, que foi publicado em Lisboa em 1540. O documento é um registo interessante da vida na Etiópia antes da invasão muçulmana.
Descrevendo a celebração do Timket no Norte do país, o cronista sustém, erroneamente, que os etíopes são rebaptizados cada ano durante estas celebrações, passando nus através de um tanque enquanto são abençoados pelo patriarca. Contudo, o banho lustral das celebrações do Timket não será mais que a memória da purificação baptismal que os bebés nascidos no seio das famílias ortodoxas abexins, seguindo a tradição do Primeiro Testamento, recebem no oitavo dia de vida. O rito baptismal é acompanhado pela circuncisão dos varões.
Parece que a celebração do Timket tenha sido importada de Alexandria, no Egipto, a Igreja-mãe da Etiópia. De facto, a igreja copta celebra a epifania do Senhor no mesmo dia em que na Abissínia se festeja o Timket e essa solenidade é uma das mais populares da Igreja copta. Tratar-se-ia originalmente de uma festa pagã muito antiga associada com o rio Nilo, que era tido como uma divindade, e que, entretanto, recebera um cunho cristão.
Os textos litúrgicos coptas sublinham que no dia da Epifania o Messias apareceu como Filho de Deus e como Cordeiro que veio para tirar os pecados do mundo, sendo os fiéis purificados das suas faltas através da água benta de uma forma parecida com o baptismo.
A festa do Timket coincide ainda com o fim das colheitas na Etiópia, altura em que termina a ceifa dos cereais. A sua celebração com a vigília em tendas apresenta características que fazem recordar a festa bíblica das Tendas (ou dos Tabernáculos). Tratava-se de um festival israelita para marcar o final do ano agrícola e, ao mesmo tempo, recordar os anos de peregrinação pelo deserto e a entrega da Lei a Moisés no monte Sinai. Os judeus trocavam o conforto do lar por choças ou tendas provisórias em que viviam durante essa semana. A Igreja Ortodoxa etíope é caracterizada por uma vertente veterotestamentária muito marcada no modo como vive e ritualiza a fé.

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