05 DE NOVEMBRO DE 2016 AD 00:00 - Professor Doutor Anselmo Borges »» Sofrimento, medicina e o transcendente. Homenagem a João Lobo Antunes
Sofrimento, medicina e o transcendente (HaShem). Homenagem a João Lobo Antunes
Para
um dos colóquios Igreja em Diálogo, sobre "Religião e (In)felicidade",
também convidei o professor João Lobo Antunes, para falar precisamente
sobre "Sofrimento, medicina e o transcendente". Mandou-me o texto da
conferência, que ainda não publiquei. O que aí fica é um brevíssima
síntese, que é, julgo, a melhor homenagem que posso prestar ao amigo,
médico de fama mundial, professor ilustre, homem da cultura, mestre da
escrita, humanista, cristão.
"O papel
da espiritualidade no contexto do sofrimento e da doença é tema que
entre nós habitualmente se mantém circunscrito ao domínio de uma visão
confessional da medicina ou da saúde em geral. Devo dizer que este é
tópico que me tem ocupado regularmente ao longo dos anos, estimulado,
quem sabe, por uma angústia metafísica que periodicamente emerge."
Na
busca de uma definição de espiritualidade, poderíamos dizer de modo
simples que "é uma atitude ou uma procura de um sentido intimamente
ligado à relação que cada um de nós tem com o transcendente", sendo de
notar que "a espiritualidade não está necessariamente ligada à
religiosidade. Esta implica a adesão pessoal a uma crença ou à prática
de uma religião organizada. De facto, pode admitir-se que um não crente
tenha a sua forma própria de "espiritualidade", ou seja, uma relação com
valores transcendentes".
"A prática da
medicina bem como a experiência da doença levantam problemas críticos
de significado e sentido - questões fundamentais, como apontou Renée
Fox, sobre os "porquês da dor, do sofrimento e da angústia, os limites
da vida humana, e a morte, e as suas relações com o mal, o pecado e a
injustiça"."
Tudo indicaria que os
avanços da ciência e, nomeadamente, da medicina, a explosão da realidade
virtual e do ciberespaço, teriam "como consequência, como se de um jogo
de forças antagónicas se tratasse, um recuo na crença religiosa. De
facto, o oposto parece verificar-se, e o interesse pelos debates sobre a
relação entre ciência e fé tem crescido de forma surpreendente."
A
sociedade portuguesa é hoje "uma sociedade laicizada e avessa à
discussão dos problemas da religião e da espiritualidade, como se não
tivéssemos recuperado do jacobinismo dos princípios do século passado.
Vale a pena citar, como contraste, o que se passa com os Estados Unidos,
onde 80% da população acredita no poder da religião e 77% dos doentes
hospitalizados desejam que os médicos lhes falem sobre estes temas.
Sublinhe-se ainda que pelo menos 30 faculdades de Medicina têm cursos
sobre espiritualidade, religião e saúde".
Referindo
longamente esta temática, sublinhou a atenção crítica necessária na
abordagem "científica" destas questões. Mas disse que "a ideia de que a
espiritualidade e a religião trazem benefícios à saúde deveria não
chocar os mais cépticos. Sir William Osler, o fundador da medicina
clínica tal como hoje a entendemos, já falava em 1910 na faith that heals."
"O
que não se pode questionar é que a doença é, como alguém disse, um
acontecimento espiritual que nos agarra pelo corpo e pela alma e que a
ambos perturba". E, percebendo que "a visão reducionista e mecanicista
da moderna medicina já não é satisfatória", "doentes e médicos começam a
realizar o valor de elementos como a fé, a esperança ou a compaixão,
esta última tão inexplicavelmente ausente do discurso bioético
contemporâneo". Como afirmou o filósofo A. Heschel, "to heal a person, we must first be a person".
Concluiu
que "a espiritualidade na prática médica exige grande virtude, coragem,
perseverança e o que alguém chamou de "fidelidade criativa". E,
evidentemente, esperança, pois, como dizia S. Paulo, "é na esperança que
somos salvos"."
E não resistiu a
contar duas breves histórias da clínica. "Já há largos anos, num domingo
de Verão, telefonou-me um colega neurologista, dizendo-me que tinha uma
menina internada num hospital particular de Lisboa, pedindo-me que a
observasse. Perguntei-lhe se era uma situação urgente e ele respondeu-me
que não lhe parecia, pelo que foi combinado eu visitá-la depois do
jantar. Eu estava em Cascais, num almoço à beira de uma piscina, num
animado convívio social. Subitamente, sem qualquer motivo, decidi
interromper o almoço e parti para Lisboa. Quando cheguei, a menina tinha
entrado em coma naquele momento, e foi salva por uma intervenção
urgente. Ela é hoje mãe de uma Madalena. A segunda história passou-se,
estava eu ainda em Nova Iorque, e regressava de avião de um congresso
quando, a caminho de casa, decidi parar no meu hospital. Lá também, por
uma qualquer razão que ainda hoje me escapa, desloquei-me ao hospital de
crianças anexo ao meu edifício para ver um rapazinho que operara dias
antes. No momento em que entro no quarto ele fez uma paragem
respiratória de que é salvo in extremis por uma nova
intervenção. Tenho contado estas histórias (e poderia acrescentar
outras) a alunos, internos e colaboradores. Não me atrevo a
atribuir-lhes um sentido transcendente, mas também não as reduzo a
situações de simples acaso ou sorte. Digo apenas que é preciso estar
atento a uma voz interior e responder sem hesitações ao seu comando.
Para tal, é preciso, pois, estar sempre à escuta, como se conta do jovem
profeta Samuel."
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico